Coleções de Etnografia e de Armaria
POR TERRAS DO CONCELHO
Num passado não muito distante, até cerca do último quartel do século XX, o concelho de Carregal do Sal centrava as suas principais atividades económicas na vida do campo, na pastorícia, na pequena indústria de madeiras e no fabrico de móveis, onde a tradição de marcenaria viria a desempenhar um importante fator de desenvolvimento local, a par da vinicultura, da moagem e do comércio do sal de que foi o principal percursor neste planalto beirão.
Contudo, era nos meios rurais que grande parte da sua população se mantinha ativa. A vida desta gente era ritmada pelas tarefas agrícolas, labuta que não tinha fim e onde sol marcava as horas. Da preparação da terra às colheitas, o terreno e a paisagem apresentavam-se continuamente ocupados por pessoas que dali retiravam o seu sustento. Os lavradores calcorreavam os campos com as suas juntas de bois, os camponeses espalhavam à mão as sementes na terra lavrada. Depois, as colheitas e a azáfama em torno das eiras e a apanha da azeitona. Com o suor destas lides se imprimia ao campo uma dinâmica que hoje não reconhecemos.
Herdámos as recordações e vestígios dessas memórias, expressos através de objetos que pudemos recolher por terras de Carregal do Sal, do Morgadio de Loureiro de Silgueiros e de Canas de Senhorim.
O percurso expositivo é constituído por bens materiais que evocam a vida nos campos e o labor que nestes teve lugar, tentando-se, desta forma, identificar as vivências daqueles que manusearam os objetos expostos.
O espaço expositivo é apresentado através de núcleos temáticos sequencialmente dedicados à agricultura, vinicultura, moagem, destilação, marcenaria, e armaria, sendo este último relacionado com as atividades da caça.
Todas as peças nos revelam como o homem lidava com a natureza e a forma como dela poderia tirar proveito.
Ficaram os objetos como memória e para ajudar as pessoas a compreender o passado.
Encante-se e aprecie os materiais que pertenceram ao nosso quotidiano.
VINICULTURA
A atividade vitivinícola no concelho de Carregal do Sal continua, por tradição ancestral e, pelas condições climatéricas específicas do Planalto Beirão em que está integrado, a assumir um importante papel a nível socioeconómico e cultural das populações.
O número significativo de lagaretas escavadas na rocha inventariadas no território do Município são testemunhos medievais inquestionáveis que comprovam, pelo menos, desde aquele tempo, as práticas da cultura da vinha, produção e consumo do vinho como fator de importância económica e social que entrava, também, na dieta alimentar das classes mais pobres.
Caracterizada, assim, desde tempos recuados, por condições naturais e vicissitudes históricas como uma região onde predominava a estrutura de minifúndio, grande parte da cultura da vinha em terrenos acidentados e em socalcos era, como complemento das lides do campo, destinada à produção de vinho para consumo dos próprios agricultores na qualidade de donos da sua própria parcela. Posteriormente, este sistema foi gradualmente desaparecendo, dando hoje lugar a uma atividade produtiva e extensiva de exploração de vinhos de qualidade integrados na Região Demarcada do Dão. Os objetos expostos espelham bem a forte implantação que teve a importância da produção do vinho na vida da comunidade na última centúria. São equipamentos e artefactos que deixaram de ter a sua função na segunda metade do passado século e hoje ultrapassados pela rápida evolução técnica e generalização da introdução de maquinaria agrícola moderna em praticamente todos os trabalhos de campo.
Continuam, porém, os hábitos e as técnicas tradicionais da empa, da poda e escava que são executadas pelos mais idosos e detentores do saber transmitido de pais para filhos ao longo de gerações e que encontram na agricultura o seu sustento e modo de afirmação social e cultural.
MOAGEM
No último quartel do passado Século um número significativo de moinhos tradicionais movidos pelas águas das ribeiras que atravessavam todas as freguesias do concelho davam vida e encanto à paisagem, num quadro de bucolismo e autenticidade.
Nos dias de hoje são muito pouco os que funcionam e encontram-se na maioria dos casos em completa ruína encerrando memórias que só os mais idosos se lembram de descrever. Porém, existem em funcionamento alguns exemplares que continuam, em casos pontuais, a atividade da moagem, principalmente o milho, fazendo recordar o que foram aqueles tempos e os modos de vida das populações.
Era, então frequente, por parte das pessoas do campo, pedir a um moleiro para moer o seu milho que era o cereal mais cultivado por terras deste Município e que era moído a troco de pagamento de uma maquia, porção muitas vezes correspondente a cerca de uma décima parte do grão.
Com a farinha de milho se cozia a broa nos fornos existentes em praticamente todas as freguesias do concelho, constituindo aquele pão um dos principais alimentos no dia a dia das populações, designadamente nas famílias com mais baixos rendimentos.
Com este núcleo temático se pretendeu reviver, através dos objetos expostos e das imagens que o completam, o ciclo da vida agrícola e o modo tradicional da moagem e panificação, hoje praticamente substituídos por meios mecânicos.
MARCENARIA
Os objetos expostos são referências histórico-culturais de um sector de atividade económica que marcou grande parte do quotidiano de inúmeros marceneiros, carpinteiros e tanoeiros por terras deste Município e de Canas de Senhorim.
Com o desaparecimento gradual destas artífices e a consequente perda das técnicas e saberes tradicionais, procurou-se reunir um conjunto de instrumentos e ferramentas de trabalho que estiveram parados no tempo e que agora constituem memórias e, um meio de conhecimento para compreender o que fora um dos principais ramos de atividade criativa e produtiva no Município de Carregal do Sal.
Em algumas das suas localidades podemos ainda encontrar algumas fábricas desativadas que eram grandes centros de produção de móveis e, simultaneamente autênticas oficinas de aprendizagem na arte de trabalhar a madeira para os jovens que iniciavam a sua vida ativa.
Ao nível da tanoaria, produziam-se diversos tipos de vasilhame, cuja comercialização, continua a ser comum nas feiras tradicionais deste concelho, principalmente os pequenos barris, celhas, pipas e tonéis, para além de diverso mobiliário rústico a que, também, muitos carpinteiros se dedicavam utilizando madeiras de carvalho, castanho pinho e eucalipto.
A arte de carpinteiro, enraizada em muitos operários do concelho, é uma herança de séculos que tende a diminuir por variadas razões, a que não pode ficar alheia, a introdução do cimento e do alumínio em tudo o que é construção habitacional. Quem não se lembra das antigas casas de sobrado, dos alpendres, dos telhados em estrutura de madeira que então prevaleciam?
Estes artífices eram homens respeitados pela sua sabedoria que foi sendo aperfeiçoada ao longo de gerações. Ficaram as ferramentas como herança de uma vida de trabalho que exigiu longos anos de prática e muitos sacrifícios.
DESTILAGEM
O processo de destilagem para obtenção de aguardentes constitui ainda, nos dias de hoje, uma pratica ancestral que se generalizou a partir da Idade Média através das mais diversas formas de construção de alambiques nos quais eram aproveitados os bagaços da uva ou os vinhos de menor qualidade.
Não sendo propriedade comunitária, a posse de um alambique não era acessível a qualquer proprietário devido ao seu alto custo. Daí que só apenas os grandes senhores da terra fossem detentores de tal sistema.
Para a obtenção de aguardente os pequenos produtores recorriam àqueles, mediante o pagamento em dinheiro ou aguardente apurada.
Beber aguardente com figos secos era um costume social e cultural das gentes do campo, a que muitas vezes se designou de “matar o bicho”. O argumento de que a aguardente servia para aquecer e curar todos os males deixou, entretanto, de entrar nos hábitos alimentares das populações.
O alambique em exposição constitui um exemplar dos inícios do passado Século que foi utilizado por terras de Carregal do Sal e adquirido mais tarde pela Câmara Municipal, no sentido de se retratar e reviver ambientes identitários da cultura local neste espaço expositivo.
É constituído por uma coluna móvel e lentilha na sua parte superior, a qual é, por sua vez, ligada a uma serpentina de refrigeração.
O bagaço era colocado na coluna que, mediante os vapores, era submetido à destilação pela ação do próprio calor proveniente da caldeira.
ARMARIA
Fazem parte desta coleção nove espingardas de caça do século XIX que foram apreendidas a caçadores furtivos no concelho de Carregal do Sal, em meados do século XX. Ao tempo, o posto da Guarda Nacional Republicana situava-se no próprio edifício da Câmara Municipal sendo esta, uma das razões da sua permanência nesta instituição como parte integrante e representativa dos bens patrimoniais e culturais do concelho.
Num estudo recente, efetuado a esta coleção, constatou-se que, em nenhuma das armas existe o punção de fabricante ou, qualquer outra marca que pudesse permitir a identificação da sua origem, situação que nos leva a admitir estarmos perante um conjunto homogéneo de armas de fabrico artesanal “clandestino”, cuja proveniência e fabrico se desconhece.
Por seu lado, numa análise comparativa com armas de tipologia congénere verificou-se que, toda a coleção é constituída por espingardas de percussão evidenciando elementos comuns a este tipo de modelo, o de possuírem o respetivo cão de mecha que, por vezes, é apresentado em formas decorativas diversas, para além das incrustações também decorativas no cano e nas braçadeiras. Os exemplos que se expõem são, contudo, menos elaborados, tanto ao nível de acabamento artístico dos metais, como na própria madeira que foi aplicada na coronha.
Este sistema de percussão surgiu nos inícios do Século XIX, por consequência da evolução tecnológica da ignição por percussão, porquanto estas proporcionavam grande resistência ao tempo húmido.
Para além deste facto, não está excluída a hipótese de as mesmas terem sido usadas durante e após o período das invasões francesas, assim como, estarem associadas às convulsões sociais durante as lutas liberais e das próprias incursões de João Brandão neste território, cujas referências documentais existentes são bem elucidativas acerca do período que se viveu.
No entanto, as atividades da caça pelo território do concelho constituíram desde sempre um passatempo lúdico enraizado nos valores da tradição, designadamente direcionado para a caça ao javali, ao coelho bravo, à perdiz e demais espécies existentes, pelo que, se admite, terem sido posteriormente usadas neste tipo de atividade.